Da Recife Drainage Company à Central de Atendimento ao Eleitor
Edifício no Bairro de São José guarda em sua arquitetura resquícios do passado recifense
Como acontece em todos os anos eleitorais, o movimento de pessoas na Central de Atendimento ao Eleitor do Recife, na Praça das Cinco Pontas, tem considerável aumento. E não será diferente neste 2020, ano de Eleições Municipais. O marco do pleito no calendário da cidade faz com que inúmeros eleitores se dirijam ao prédio para regularizar sua situação, transferir o domicílio eleitoral, mudar de local de votação, ou, não raro, voluntariar-se para o trabalho como mesário no dia das eleições. Jovens, dos mais diversos bairros, também procuram atendimento: querem alistar-se eleitores e assegurar, desta forma, no sigilo indevassável da urna eletrônica a manifestação de sua voz cidadã, traduzida em livre escolha de seus representantes.
Todo esse movimento anima o prédio, dá-lhe vida e lhe confere sentido, pois esta arquitetura existe hoje justamente para viabilizar essa confluência da população com a Justiça Eleitoral. No entanto, por trás do véu do presente existem outras temporalidades inscritas no prédio, uma edificação antiga que conta um pouco a história do Recife e de seu desenvolvimento urbano.
De acordo com o técnico judiciário e mestrando em História da Arte, Patrimônio e Cultura Visual na Universidade do Porto, Bruno Vitorino, a arquitetura foi originalmente construída na primeira metade da década de 1870 para abrigar as instalações da Recife Drainage Company Limited, uma empresa organizada em Londres cujo negócio estava no esgotamento e “asseio”, para usar uma expressão da época, da cidade. Neste edifício, seriam instaladas as máquinas da elevação de água para o reservatório e a bomba de esgoto. Ademais, conforme as exigências do governo da província pautadas por um sentido de ordenamento urbano e “aformoseamento” da cidade, deveria a companhia “gradear o espaço compreendido pelo mesmo edifício, nivelando-o e ajardinando-o”.
A construção foi movida pela urgência, pois as demandas do Recife em acelerado desenvolvimento urbano exigiam os serviços da empresa o quanto antes. O anúncio da companhia no Diário de Pernambuco de 30 de novembro de 1869, defende Bruno, não deixa a menor sombra de dúvidas: “A Recife Drainage Company Limited, precisa de pedreiros e trabalhadores: a trabalhar nas obras em construção no largo das Cinco Pontas”.
O fato é que em 1875 o edifício estava construído e em funcionamento. A planta da cidade do Recife traçada neste mesmo ano confirma a existência da companhia no largo das Cinco Pontas. Já a litogravura de Francisco Henrique Carls, de 1878, revela um aspecto da edificação e de sua envolvência: à direita, vemos a Matriz de São José ainda com a torre sineira direita por acabar; ao centro, a estação dos caminhos de ferro do Recife a São Francisco que se iniciavam nas proximidades do Forte das Cinco Pontas (e cujos vestígios ainda hoje lá estão); e à esquerda, uma parte do edifício da companhia ostentando o que parece ser seu “reservatório d’água sobre uma torre” em ferro, estrutura tão marcante por sua novidade e arrojo que o artista fez questão de fixar.
Para Bruno Vitorino, o surpreendente, comparando o prédio atual com sua representação na imagem do século XIX, é constatar que a fisionomia da edificação encontra-se praticamente inalterada. "Permanece a fachada em pedra aparente, com a volumetria da construção animada ao centro por um corpo ligeiramente avançado, o qual quebra o caráter retilíneo da construção e estabelece um ritmo simétrico nas janelas, quatro de um lado, quatro do outro. Estão lá também o embasamento devidamente marcado e, acima, uma moldura saliente (cornija) que é coroada por uma platibanda, a grosso modo uma espécie de mureta que oculta o telhado", explica o pesquisador.
Toda essa austeridade concebida para a fachada, diga-se, não era à toa: a edificação precisava comunicar não a artisticidade de um grupo de arquitetos, mas a racionalidade que desejava transmitir o corpo de engenheiros da Recife Drainage Company envolvido com os assuntos da organização e melhoramentos materiais da cidade. Um prédio, afinal, que fala a que veio.
Uma cidade é um organismo vivo: expande-se e se transforma constantemente. Daí a importância de efetivamente se enxergar essas edificações históricas, verdadeiros dispositivos de memória dispersos no tecido urbano, estudá-las, difundi-las, e mais: integrá-las ao hoje da cidade. E é exatamente isto o que acontece com antigo prédio da Recife Drainage Company transformado em Central de Atendimento ao Eleitor do Recife.